Monday, July 11, 2011

A partir de Ferrara: Cantico dos Canticos

Cântico dos Cânticos que fez Selomoh


I


beija-me de beijos de tua boca
melhores teus quereres
mais que vinho

pelo cheiro de teus óleos bons
óleo vazado
teu nome

por isso moças te amam

leva-me junto a ti
correremos



trouxe-me o rei
a seus quartos

agradar-nos-emos
e alegrar-nos-emos
em ti

lembraremos tuas querências
mais que vinho de cevada

os rectos te amam



negra eu
e desejável
filhas de Yierusalaim
como tendas de Kedar
como cortinas de Selomoh

não me fiteis porque denegrida
que me enegrece o sol

filhos de minha mãe
estão irados
me puseram guardadora às vinhas
a minha vinha
que a mim não guardei


denuncia-me
quem amo

minha alma
onde apascentas
onde fazes jazer
nas sestas

porque porque
farei
como envolvente procura
os rebanhos de teus companheiros


se não te o sabes
ó formosa entre as mulheres
achai os rastos das ovelhas
e apascenta tuas cabritas
perto das moradas dos pastores

a égua nas quadrigas de Pharhoh
te se assemelha
minha companheira

afermosaram-se tuas faces
com joias
teu pescoço
com colares

joias de ouro te faremos
com pinturas de prata


enquanto o rei se recosta
meu nardo deu seu odor

atadura de mirra
meu querido
a mim
entre minhas tetas
mergulha

rácimo de cânfora
meu querido
a mim
nas vinhas de Hengedi

de tua fermusura
minha companheira
és tu formosa
teus olhos pombalinos

tu és formoso
meu querido
também suave
também nosso
leito florido

vigas de nossas casas
cedros
nossos corredores
abetos



II

Eu
o lírio da planura
a rosa dos vales

como rosa entre espinhos
assim minha companheira
entre as filhas

como macieira entre àrvores do monte
assim meu querido
entre os filhos

em sua sombra
cobicei e estive
e seu fruto
é doce a meu paladar

trouxe-me à casa do vinho
e sua ponta
sobre meu amor

aguentai-me com redomas
esforçai-me com maçãs
porque doente estou
de amor
eu

sua esquerda debaixo
de minha cabeça
sua direita
me abraçará

vos conjuro
filhas de Yerusalaim
por corças
por cervas do campo
se despertardes
ou se fizerdes despertar
o amor
faça-o como queira

voz de meu querido
heis que lá vem
saltando sobre os montes
saltando sobre os outeiros

almeja meu querido gamo
ou Enodio dos cervos
hei-lo
está detrás de uma parede
espreitando pelas janelas
mostrando-se pelas frinchas

respondeu o meu querido
e me disse

levanta-te
minha companheira
minha formosa
vem-te

porque foi passado o inverno
a chuva passou
foi-se

os verdejantes apareceram na terra
a hora do cântico chegou
e voz da rola foi ouvida
na nossa terra

a figueira despontou seus figos
e as vides em agraço
deram cheiro

levanta-te
minha companheira
minha formosa
e vem-te


minha pomba
em resquicios da penha
em encoberta de falcão
faz-me ver tua vista
faz-me ouvir tua voz
porque tua voz é saborosa
e tua vista desejável

tomai-nos raposas
raposas pequenas
razando as vinhas
essas vinhas em flor

meu querido amigo
e eu dele
ele apascentando
entre lírios

até que assopre o dia
e fujam as sombras
volta-te
a ti se assemelha
meu querido
o gamo
ou o Enodio dos cervos
sobre montes de divisão

Génesis 2 e 3

já agora - ainda com coisas a limar, para quem gostou, o fim
da primeira história (que é um manifesto)

e a segunda versão do acto criador, mais carnal, mais moral e mais erótica


II



e acabou-se os céus e a terra
e todo o seu cortejo
e acabou o deus
no dia sétimo
sua obra que fez
e folgou no dia sete
de toda a obra que fez
e bendisse o deus
ao dia o sétimo
e santificou ele
que em si folgou
de toda sua obra
que criou o deus
para fazer

estas são as gerações
dos céus e da terra
em seu ser criados
em dia de fazer

A. deu terra e céus
e toda a árvore do campo
antes que fosse na terra
e toda a erva do campo
antes que esverdessesse
que não fez chover

A. deu sobre terra e homem
não para lavrar a terra
e vapor subia da terra
e regava
todas as faces da terra

e criou A. deus
ao homem pó da terra
e soprou em seu nariz
alento de vidas
e foi o homem por alma viva

e plantou A. deus
horto em Heden de oriente
e pôs ao homem que criou
e fez esverdecer

A. deu de terra toda a àrvore
cobiçosa à vista
e boa de comer

e árvore das vidas
entre o horto
e árvore do saber bem e mal
e rio saínte do Héden
para regar ao horto
e daí se repartia
por quatro cabeças

nome de um Pison
o arrodeante
a toda a terra de Havilah
que tem o ouro
e ouro da terra essa
bom
há o bdélio
e a pedra Soham

e nome de rio
o segundo
Guihon
o arrodeante
a toda a terra de Ethiopia

e nome de rio
o terceiro
Hidekel
o andante
a oriente da Assíria

e o rio
o quarto
o Euphrates

e tomou A. deus ao homem
e pô-lo em horta de Heden
para lavrá-la e para guardá-la

e encomendou A. deus sobre o homem
por dizer
de toda a árvore do horto
comer comerás
e de árvore do saber bem e mal
não comerás

do que em dia comer
do morrer morrerás

e disse A. deus
não bom ser ao homem
o seu a sós
farei a ele ajuda
como encontro a ele

e criou A. deus
da terra
todo animal do campo
e a toda a ave dos céus
e trouxe ao homem
por ver que chamaria a ele
e a tudo o que chamava ele
o homem alma viva
o seu nome

e chamou homem nomes
a toda a quatro patas
e a ave dos céus
e a todo animal do campo

e ao homem não achou ajuda
como encontra ele
e feito

A. deus adormidara
sobre o homem
e adormeceu-se
e tomou uma de suas costelas
e cerrou carne em seu lugar

e fraguou A. deus
à costela que tomou do homem
por mulher

e trouxe-a ao homem
e disse o homem esta
a vez
osso de meus ossos
e carne de minha carne
a esta será chamada mulher
que de varão foi tomada esta

Portanto deixará
varão a seu pai e a sua mãe
e apegar-se-á com sua mulher
e serão por carne uma

e eram ambos nus
o homem e sua mulher
e não se envergonhavam


III


E o cobra era arteiro
mais que todo o animal do campo
que fez A. deus

e disse à mulher
quanto mais
que disse o deus
não comeis de toda árvore do horto

e disse a mulher ao cobra
do fruto da árvore do horto comeremos
e do fruto da árvore
que entre o horto disse o deus
não comeis dele
e não toqueis nele
por quanto morrereis

e disse o cobra à mulher
não morrer morrereis

que sabe o deus
que em dia de vosso comer dele
e abrir serão vossos olhos
e sereis como anjos
sabentes bem e mal

e viu a mulher
que bom
a árvore para comer
e que desejo
ela para os olhos
e cobiçada a árvore para entender

e tomou de seu fruto
e comeu
e deu também a seu marido com ela
e comeu

e abriram-se os olhos de ambos eles
e souberam que nus eles
e coseram folha de figueira
e fizeram para eles cinturas
e ouviram a voz de A. deus
andando no horto
ao ar do dia
e escondeu-se o homem
e sua mulher
diante A. deus
entre a àrvore do horto

e chamou A. deus ao homem
e disse a ele
a onde tu

e disse
a tua voz ouvi no horto
e temi que nu eu
e escondi-me

e disse
quem denunciou a ti
que nu tu
se da árvore que te encomendei
por não comer dela comeste

e disse o homem
a mulher que deste comigo
ela deu a mim da árvore
e comi

e disse A. deus à mulher
que isto fizeste

e disse a mulher
o cobra me seduziu
e comi

e disse A. deus ao cobra
que fizeste isto
maldito tu
mais que todos os quatro patas
e mais que todo o animal do campo

sobre teu peito andarás
e pó comerás
todos os dias da tua vida

e malquerença porei
entre ti e entre a mulher
entre teu sémen e seu sémen
ele te ferirá cabeça
e tu lhe ferirás calcanhar

à mulher disse
multiplicar multiplicarei tua dor
e tua prenhez

com dor parirás filhos
e a teu marido teu desejo
e ele senhoreará em ti

e ao homem disse
porque ouviste a voz de tua mulher
e comeste da arvore
que te encomendei por dizer
não comas dela
maldita a terra por ti
com dor a comerás
todos os dias de tuas vidas
e espinho e cardo te enverdecerá
e comerás a erva do campo

com suor de teus narizes comerás pão
até tu tornares à terra
que dela foste tomado
que pó tu
e a pó tornarás

e chamou o homem
nome de sua mulher Hava
que ela foi mãe de todo o vivo

e fez A. deus ao homem e a sua mulher
tangas de couro
e fê-los vestir

e disse A. deus

o homem
foi como um de nós
por saber bem e mal
e agora talvez estenderá sua mão
e tomará da árvore das vidas
e comerá e viverá para sempre

e enviou-o A. deus
do horto do Heden
para lavrar a terra
que foi tomado dali
e desterrou o homem
e fez morar de oriente
ao horto do Héden
os querubins
e a chama da espada
transtornando-se
por guardar o caminho
da arvore das vidas.

Saturday, July 09, 2011

Biblia de Ferrara vertida em "português"

"Versão" minha do primeiro capitulo da Génesis a partir do texto em ladino da Bíblia dita de Ferrara (1553) editada pelo "português" Abrão Usque e o tipógrafo espanhol Yam-Tob Athias. Um gramática esquisita, mais perto do ritmo oral tradicional e com conjugações "erradas" que seguem a gramática hebraica. Texto que serviu de base à tradução espanhola, belíssima, dita Reina-Valera e por sua vez à tradução portuguesa de Ferreira de Almeida - ambas se encontram no mercado (excepto a edição da Assírio e Alvim) adulteradíssimas, mesmo quando se dizem restituídas (depois de "actualizadas e corrigidas).

Traduzi o texto ontem à noite, de seguida, excitado - tentei manter a linguagem algo arcaica, mas também artificial do texto, com inevitáveis neo-logismos. Comparei agora com a versão experimentalista de Haroldo de Campos e em muito se lhe assemelha. Estou-me nas tintas para declarações de fidelização a um texto original. Gosto do critério de Fernando Pessoa quando sugere que as interpolações também podem ser inspiradas. E toda a tradução é interpolada pelo momento-contexto-biografia do tradutor. Esta é uma declaração de amor à ignorada Biblia de Ferrara e a tantas outras versões em muitas linguas. Na edição de Ferrara as maíusculas só existem em função da pontuação. Por exemplo, os nomes de deus só surgem em minúsculo. Suprimi toda a maiúscula e minuscula tendo em conta que o alfabeto hebraico não tem estas duas versões hierarquicas, e suprimi a pontuação, que é densa, em troca de uma clareza poética que pode ser dada em "verso".



Aqui vai:

Genesis I

a príncipio criou o deus

aos céus e à terra

e a terra era vã e vazia

e escuridade

sobre faces de abismo

e espirito do deus se movia

sobre faces das aguas

e disse o deus

seja luz

e viu o deus a luz

que boa

e apartou o deus

entre a luz e entre a escuridade

e chamou o deus à luz dia

e à escuridade chamou noite

e foi tarde e foi manhã

dia um


e disse o deus

seja expandidura no meio das àguas

e seja apartante entre àguas e àguas

e fez o deus a expandidura

e apartou entre as àguas

que debaixo à expandidura

e entre as àguas

que de cima à expandidura

e foi assim

e chamou deus à expandidura

céus

e foi tarde e foi manhã

dia segundo


e disse o deus

apanhem-se as àguas

que debaixo dos céus

a lugar um

e apareça a seca

e foi assim

e chamou o deus à seca terra

e ao apanhamento das àguas chamou mares

e viu o deus

que bom

e disse o deus

esverdeie a terra verdejante erva

assemente semente

àrvore de fruto

fazendo fruto à sua maneira

que se semente nela sobre a terra

e foi assim

e sacou a terra esverdeante erva

assementando semente à sua maneira

e àrvore fazia fruto

que se semente nela à sua maneira

e viu o deus que bom

e foi tarde e foi manhã

dia terceiro


e disse o deus

sejam luminárias na expandidura dos céus

para apartar entre o dia e entre a noite

e sejam por sinais

e por prazos e por dias e anos

e sejam por luminárias

na expandiduras dos céus

para alumiar sobre a terra

e foi assim

e fez deus a duas

as luminárias grandes

à luminária grande para senhorear o dia

e à luminária pequena para senhorio da noite

e às estrelas

e viu a elas o deus

na expandidura dos céus

para alumiar sobre a terra

e para senhorear no dia e na noite

e para apartar entre a luz e entre a escuridade

e viu o deus

que bom

e foi tarde e foi manhã

dia quarto


e disse o deus

serpenteiem as àguas

serpente de alma viva

e ave que voe sobre a terra

sobre faces da expandidura dos céus

e criou o deus as cobras

as grandes

e toda a alma

a viva

a removente

que serpenteie as àguas

de suas maneiras

e a toda a ave de asa

de sua maneira

e viu o deus

que bom

e bendisse a elas o deus por dizer

frutificai e multiplicai e enchei

as àguas nos mares

e a ave se multiplique na terra

e foi tarde e foi manhã

dia quinto


e disse o deus

saque a terra alma viva

à sua maneira

os quatro patas

e todo o removente

e animal de terra

à sua maneira

e o fez o deus animal de terra

à sua maneira

e os de quatro patas

à sua maneira

e toda a remexida de terra

à sua maneira

e viu o deus

que bom

e disse o deus

façamos homem em nossa figura

como nossa semelhança

e senhoreie em pescado do mar

e em ave dos céus

e nos de quatro patas em toda a terra

e em todo o removente

que remove sobre a terra

e criou deus o homem em sua figura

em figura do deus ele a criou

macho e femea os criou

e os abençoou o deus

e lhes disse o deus

frutificai e multiplicai e enchei a terra

e subjugai-a e senhoreie

em pescado do mar e em ave dos céus

e a todo o animal removente sobre a terra

e disse o deus

a vós foi dada toda a erva

assementai sementes

sobre faces de toda a terra

e toda a arvore cujo fruto de àrvore

assemente sementes

vos será para comer

e a todo o animal da terra

e a toda a ave dos céus

e a todo o removente sobre a terra

em cuja alma se viva

toda a verdura de erva

para comer

e foi assim

e viu o deus a tudo o que fez

e é bom muito

e foi tarde e foi manhã

dia sexto

Thursday, November 11, 2010

Han Shan



Tradução selvagem a partir da tradução do snyder

1

O caminho para os lados de Han-shan é risível,

Um trilho,

mas nenhum indício de carro ou cavalo.

Desfiladeiros convergem

- difícil desenhar suas torções.

Falésias amaranham-se - incrivelmente resistentes.

Mil ervas

curvam-se ao orvalho,

Um monte de pinheiros cantarola ao vento.

Neste momento perdi o atalho pra casa,

E o meu corpo é sombra

perguntando:

como vais sobreviver?

2

Num emaranhado de falésias

escolhi um lugar -

Aves percorrem-nas,

mas não há trilhos para mim.

O que há além da vegetação?

Vagas nuvens brancas rodeiam rochas.

Muito o que aqui vivi -

quantos anos? -

Uma e mais uma

a primavera,

passado

o inverno.

Vai e diz às famílias, seus utensílios e carroças:

"De que serve tanto dinheiro e ruído?"

3

Na serra faz frio.

Sempre frio,

não só este ano.

Afiadas escarpas onde neva sempre.

Bosques na escura névoa cospem ravinas.

Os arbustos ainda estão florindo no final de junho,

As folhas começam a cair no início de agosto.

E aqui estou eu, no alto

das montanhas,

Contemplando & contemplando

mas o céu não se deixa olhar.

4

Fustigo meu cavalo pela cidade devastada.

A cidade destruída afunda o meu espírito.

No alto,

E em baixo,

velhos parapeitos

Grandes

Ou pequenos,

os túmulos da velhice.

Abano a minha sombra, solitária;

Nem mesmo o estalido de um caixão é ouvido.

Tenho pena dos ossos vulgares,

Os livros dos Imortais ignoram os seus nomes.

5

Queria um refúgio perfeito:

A Fria Montanha abraçou-me.

Vento ligeiro em pinheiros ocultos -

Ouço a proximidade - o som clarifica-se.

Lá, um homem de cabelos grisalhos

Tartamudeia lendo Huang e Lao.

Durante dez anos nunca regressei a casa

E esqueci-me do caminho pelo qual cá cheguei.

6

Homens perguntam o caminho para a Fria Montanha

Fria é a Montanha e não há meios nem caminhos.

No verão, o gelo não derrete

A aurora turva-se no turbilhão de nevoeiro.

O que é que raio fui fazer?

Meu coração não é idêntico ao teu.

Se o teu coração fosse como o meu

Vinhas já buscá-lo e aqui ficarias.

7

Habituei-me à Fria Montanha há tanto tempo,

Já lá vão

anos e anos.

Livremente à deriva,

rondo bosques e riachos

E permaneço assistindo

ao calmo eclodir das coisas.

Os homens não chegam tão longe nas montanhas:

Nuvens brancas

reunindo

e crescendo.

A fina erva

acolchoa,

O céu azul faz

uma bela manta.

Estou feliz com um pedra na cabeça.

Que o céu e a terra alternem as mutações.

8

Escalo os caminhos da Fria Montanha,

Na Fria Montanha os trilhos sobem sobem.

O longo desfiladeiro engasgou-se

com seixos e pedregulhos.

É amplo o riacho.

A névoa embaça as ervas.

O musgo é escorregadio,

mas não houve chuva

O pinheiro canta,

mas não há vento.

Quem é capaz de sobreviver aos nós das palavras

E sentar-se comigo entre brancas nuvens?

9

Ásperos e escuros

- os trilhos da Fria Montanha,

Dentados pavimentos

- a margem do riacho congelado.

Queixume do chilrear

- aves sempre.

Desolado & sozinho:

nem sequer um caminhante solitário.

Chicote, chicote

- o vento fere minha face

Rodopiam e caiem

- flocos de neve nas minhas costas.

Manhã atrás de manhã,

não vejo o sol

Ano após ano,

nenhum sinal de primavera.

10

Vivi na Fria Montanha

longos longos trinta anos.

Ontem perguntei por familiares e amigos:

Mais de metade foi-se para as Nascentes Amarelas.

Vida lentamente devorada, como o fogo de uma vela;

Inecessante flui, como rio que passa.

Ao despertar deparo com minha solitária sombra:

Turvam-se os olhos de lágrimas.

11

A nascente de água no verde riacho

é clara.

O luar na Fria Montanha

é branco.

Silencioso saber - o espírito ilumina-se

no ser só.

Contemplar o vazio: este mundo excede

a quietude.

12

Nos meus primeiros trinta anos de vida

Vagueei centenas e milhares de quilômetros.

Andei por rios através de verdes e profundos arbustos

Penetrei na poeira vermelha de cidades ardentes.

Experimentei drogas, mas não me tornei Imortal;

Li livros e escrevi poemas sobre a história.

Hoje regresso à Fria Montanha:

Vou dormir junto ao riacho e purificar meus ouvidos.

13

Eu não suporto estes trilos de aves!

Vou já descansar na minha toca de palha.

As flores de cerejeira estão escarlates

O salgueiro atira-se das empenas.

O sol matinal paira sbre os picos azuis.

Nuvens brilhantes lavam lagoas verdes.

Quem saberá que estou fora do poeirento mundo

Subindo a vertente sul da Fria Montanha?

14

A Fria Montanha esconde

mil maravilhas,

As pessoas que aqui sobem

assustam-se.

Quando a lua brilha,

reluzem as claras àguas

Quando o vento sopra,

revolvem ervas e bagas.

Na ameixa nua:

flores de neve

No tronco morto:

folhas de névoa.

Ao toque de chuva, tudo se volve

renovado e vivo.

Na estação ruím é impossível atravessar riachos.

15

Há uma criatura nua na Fria Montanha

Com corpo branco e cabeça escura.

Na sua mão leva dois manuscritos,

Um é o Caminho e outro o Poder.

A sua cabana não tem panelas nem forno.

E vai para longas caminhadas todo desfraldado.

Mas leva sempre consigo a espada da sabedoria:

Para cortar insensatos propósitos.

16

Montanha Fria é uma casa

Sem seres ou paredes.

As seis portas abrem-se à direita e à esquerda.

O salão é o céu azul.

Os quartos estão nús e vazios

A parede leste toca na parede oeste

No centro de nada.

Os gatunos não me incomodam.

No frio faço uma fogueira

Quando estou faminto coso verduras.

De que me serviria ter uma quinta

Com seu grande celeiro e pastagens?

Ela encerra-nos como uma prisão.

Uma vez que a não podemos abandonar.

Pensa nisso -

Já sabes o que te pode acontecer...

17

Se me esconder na Fria Montanha

Vivendo de bagas e plantas da montanha

Toda a minha vida, porque me hei-de ralar?

Cada um segue segundo o seu karma.

Dias e meses fluíndo como a água.

O tempo é como faíscas desbastando pedregulhos.

Toca a andar e deixa as mundanças mudar -

Estou tão feliz por me sentar em falésias!

18

A maioria dos homens Tientai

Não conhece Han-shan.

Ignora o seu verdadeiro pensamento

E acham que ele só diz tolices.

19

Chegado à Fria Montanha, cessam os problemas -

Acabaram-se os emaranhados: a cabeça desliga.

Escrevinho perguiçosos poemas sobre penedos,

Agarrando o que agarrar, como barco à deriva.

20

Certo crítico tentou arrasar-me:

"Aos teus poemas faltam os príncipios básicos do Tao."

Lembro-me então dos velhos tempos

Quando era pobre e se estava nas tintas.

Tenho que me rir dele.

O tipo não percebeu patavina!

Gajos destes

Têm que andar a sacar umas massas.

21

Sim, vivi na Fria Montanha -

quantos outonos...

Sozinho, cantarolei canções -

totalmente

sem arrependimento.

Tenho fome:

provo um grão da medicina Imortal.

Mente sólida e nítida;

firme como uma rocha.

22

No topo da montanha

fria lua

redonda:

Estou só.

Luzes no céu límpido

sem nuvens nenhumas.

Honra esse tesouro natural de incalculável valor

Oculto em cinco sombras,

mergulhado na carne.

23

Desde o ínicio que o meu lar foi a Fria Montanha.

Andei a vadiar

entre colinas, longe

de problemas.

Deixei um milhão de coisas

sem rastro

Solto, como o que flui

entre galáxias:

Uma fonte de luz,

para a mente

excelente -

Não que seja algo,

mas que surge surge!

Agora conheço a pérola da natureza de Buda

Assim como o seu uso:

uma ilimitada & perfeita

esfera.

24

Quando os homens vêem Han-shan

Todos dizem que ele é louco

Ora, ora, não há muito a observar -

Veste-se de trapos e peles.

Eles não percebem o que digo

Pois não falamos a mesma língua.

Quando nos cruzamos sugiro-lhes:

"Tentem desenrascar-se na Fria Montanha".